segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

'Lembro-a com sonhos de artista
Vivendo em Montmartre
A jovem amante do pintor.
Estudante de dança, com 23 anos.


Ele era mais velho, mais perto do fim
E tinha um olhar desiludido e intenso.
Olhos de quem viu demais
Por paixão e profissão,
Medidor de gestos e pensamentos
Litúrgico e complexo na sensualidade…


E ela, louca e jovem, despia-se para ele
que a pintava com fúria, ou com doçura,
conforme à fúria e à doçura dos enlaces acontecidos…


Só desciam de casa, na Place du Tertre
duas vezes por semana, para buscar comida,
pois viviam enfiados na alcova
no caótico estúdio do pintor
entre tintas, telas, pincéis, projectos e lençóis,
num ninho de arte e de amor.


Um dia ele disse-lhe:
- És jovem,e eu quero que partas!
Ela disse que não. Chorou…
Ele insistiu. Ela tinha de viver a vida. Dançar. Saltar.
Corpo de garça, graça de arlequim, como disse o outro.
O seu sorriso fez-se triste.
Mas o velho pintor foi insistente.
Voar era preciso!
O sonho teria de cumprir-se.
- Ela era afinal uma bailarina…


E ela partiu, com a morte na alma.
Durante um tempo sentiu-se como órfã
e as cores do mundo todo pareciam-lhe vazias.
Correu a Paris da noite, dos clubes e bas fonds
Onde viveu de tudo e de mais.
Mas apesar de todas as loucuras e orgias
Todos os gozos e prazeres da idade
o seu sorriso, ao pôr-do-sol, nas Tulherias…
era demasiado triste para viver assim,
sem o companheiro artista, sem a presença da cor.


Aí, escolheu um pássaro para parceiro de vida.
Era um pássaro exuberante, lindíssimo.
Enchia-lhe o quarto de cantos e de mil cores.


Durante um tempo, ele ia para onde ela fosse
preso no seu ombro amigo e confidente.
O mais belo, seguro e exótico,
O melhor de todos os companheiros.


Mas anos depois, num dia triste,
Já era ela então bailarina de sucesso,
Veio a saber, por acaso, que o tal pintor morrera.
Nesse instante, olhou o pássaro de cores fascinantes
Reflectiu melhor, e decidiu soltá-lo.


Também ela compreendera
que ele tinha de voar, saltar, dançar ao sol.


E libertou-o no cais do Sena
com uma lágrima rolando pela face
num dia de nevoeiro de poesia,
assim devolvendo as cores que roubara à Natureza
em memória do velho pintor que já partira
e que nunca mais as poderia criar.'

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