'Lembro-a com sonhos de artistaVivendo em MontmartreA jovem amante do pintor.Estudante de dança, com 23 anos.
Ele era mais velho, mais perto do fimE tinha um olhar desiludido e intenso.Olhos de quem viu demaisPor paixão e profissão,Medidor de gestos e pensamentosLitúrgico e complexo na sensualidade…
E ela, louca e jovem, despia-se para eleque a pintava com fúria, ou com doçura,conforme à fúria e à doçura dos enlaces acontecidos…
Só desciam de casa, na Place du Tertreduas vezes por semana, para buscar comida,pois viviam enfiados na alcovano caótico estúdio do pintorentre tintas, telas, pincéis, projectos e lençóis,num ninho de arte e de amor.
Um dia ele disse-lhe:- És jovem,e eu quero que partas!Ela disse que não. Chorou…Ele insistiu. Ela tinha de viver a vida. Dançar. Saltar.Corpo de garça, graça de arlequim, como disse o outro.O seu sorriso fez-se triste.Mas o velho pintor foi insistente.Voar era preciso!O sonho teria de cumprir-se.- Ela era afinal uma bailarina…
E ela partiu, com a morte na alma.Durante um tempo sentiu-se como órfãe as cores do mundo todo pareciam-lhe vazias.Correu a Paris da noite, dos clubes e bas fondsOnde viveu de tudo e de mais.Mas apesar de todas as loucuras e orgiasTodos os gozos e prazeres da idadeo seu sorriso, ao pôr-do-sol, nas Tulherias…era demasiado triste para viver assim,sem o companheiro artista, sem a presença da cor.
Aí, escolheu um pássaro para parceiro de vida.Era um pássaro exuberante, lindíssimo.Enchia-lhe o quarto de cantos e de mil cores.
Durante um tempo, ele ia para onde ela fossepreso no seu ombro amigo e confidente.O mais belo, seguro e exótico,O melhor de todos os companheiros.
Mas anos depois, num dia triste,Já era ela então bailarina de sucesso,Veio a saber, por acaso, que o tal pintor morrera.Nesse instante, olhou o pássaro de cores fascinantesReflectiu melhor, e decidiu soltá-lo.
Também ela compreenderaque ele tinha de voar, saltar, dançar ao sol.
E libertou-o no cais do Senacom uma lágrima rolando pela facenum dia de nevoeiro de poesia,assim devolvendo as cores que roubara à Naturezaem memória do velho pintor que já partirae que nunca mais as poderia criar.'
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